Gigante e sustentável, o pirarucu virou moda nos EUA6 min read
Às vezes você começa uma coisa e não faz ideia de aonde ela vai chegar. Foi assim com Eduardo Filgueiras, um guitarrista em dificuldades, cuja família trabalhava em um negócio inusitado no Rio de Janeiro: eles criavam rãs. Filgueiras descobriu uma forma de fundir as pequenas peles de rã umas às outras, criando algo de tamanho suficiente para ser vendido.
Enquanto isso, a milhares de quilômetros de distância, na Amazônia, um pescador e um cientista estavam trabalhando em uma inovação que ajudaria a salvar um importante peixe gigante que vive nas águas dos lagos ao longo dos afluentes do Rio Amazonas.
Manejo de um gigante
O couro é um subproduto da carne do pirarucu, um alimento básico na Amazônia que está ganhando novos mercados nas maiores cidades brasileiras.
Comunidades indígenas trabalham em conjunto com assentamentos ribeirinhos para fazer o manejo do pirarucu em áreas preservadas da Amazônia. A maior parte da produção é exportada, e os EUA são o principal mercado consumidor.
A pesca excessiva os colocou em perigo. Mas as coisas começaram a mudar quando um pescador colono, Jorge de Souza Carvalho, conhecido como Tapioca, e o pesquisador acadêmico Leandro Castello se uniram na região do Mamirauá e desenvolveram um método criativo para contar os peixes nos lagos, seu habitat favorito.
Eles se valeram de uma característica específica do pirarucu: o peixe de até 3 metros de comprimento sobe à tona para respirar pelo menos a cada 20 minutos. Um olho treinado consegue contar quantos exibem suas caudas vermelhas em uma determinada área, chegando a uma estimativa bastante precisa.
O governo reconhece esse método de contagem e autoriza a pesca em sistema de manejo. Pela lei, apenas 30% dos pirarucus de uma determinada área podem ser pescados no ano seguinte. O resultado tem sido a recuperação da população nessas áreas, permitindo capturas maiores.
Nas comunidades ribeirinhas, as pessoas comem o peixe com pele e tudo. Mas nos grandes frigoríficos, onde se processa a maior parte do pirarucu capturado, a pele estava sendo descartada. Entrou em cena, então, o curtume Nova Kaeru.
Começo humilde
A milhares de quilômetros da Amazônia, seguindo uma estrada montanhosa nos arredores do Rio de Janeiro, o Nova Kaeru processará este ano aproximadamente 50 mil peles de pirarucus legalmente capturados.
A empresa de médio porte teve um início peculiar. Em 1997, Filgueiras, o guitarrista, se envolveu no negócio de rãs da família, que criava os anfíbios para comercializar a carne. Ele ficou impressionado com a beleza da pele dos animais, mas tudo era jogado fora. Ele decidiu tentar usá-la, fez um curso de trabalho em couro, e começou a fazer experimentos.
“Não tinha recurso financeiro nenhum. Comprei uma betoneira usada, encapei com uma fibra de vidro, peguei uma máquina de lavar roupa e fiz uma máquina também de fibra. E aí eu comecei a desenvolver o couro da rã”, contou Filgueiras à The Associated Press em seu escritório.
Ele conseguiu transformar a pele em couro, mas havia um problema: era pequeno demais. Nenhum cliente em potencial tinha interesse. Filgueiras tentou unir as peças costurando, mas o resultado ficou muito feio. Ele então inventou uma maneira de fundir várias peças entre si.
Sua criação começou a ganhar destaque em feiras internacionais. Alguns anos depois, ele encontrou um sócio e fundou o curtume Nova Kaeru, especializado em couro exótico, ampliando para salmão e avestruz com técnicas que não produzem resíduos tóxicos.
Até que um dia bateu à sua porta um empresário com uma pilha de peles de pirarucu, e pediu a ele que desse uma olhada.
Ao fazer experimentos com as novas peles, Filgueiras descobriu que conseguia consertar os furos no couro do pirarucu usando a mesma técnica que desenvolvera para o couro de rã.
Ele ficou impressionado com os primeiros resultados. Nesse meio tempo, no entanto, o empresário morreu em um acidente de avião. Sem experiência anterior na Amazônia – tão diferente da sua sede no Rio – a empresa decidiu mesmo assim adquirir pele de pirarucu por conta própria na imensa região.
Eles entraram em contato com as pessoas que administram a pesca no estado do Amazonas. A rede atualmente se ampliou para 280 comunidades ribeirinhas e indígenas, a maioria em áreas protegidas de floresta, e emprega aproximadamente 4.000 pescadores, segundo o Coletivo do Pirarucu, uma organização regional. O curtume Nova Kaeru comprou as peles – o primeiro comprador que as comunidades tiveram, e atualmente o mais importante.
“A comercialização desse produto tem sido essencial e fundamental para nós, ribeirinhos”, contou à AP uma das lideranças dos ribeirinhos da região do Médio Juruá, Adevaldo Dias, em entrevista por telefone. “Ela ajuda a viabilizar o negócio todo.”
A Associação dos Produtores Rurais de Carauari, do Médio Juruá, vende cada pele por R$190, uma quantia relevante, considerando que o valor atual do salário mínimo é de R$1.212. O dinheiro ajuda a pagar os pescadores, que recebem R$8 por quilo de peixe. Dias considera que o preço ideal deveria ser R$10 por quilo, para cobrir todos os custos relativos ao manejo da pesca. Eles esperam receber esse valor em um futuro próximo com a exportação da carne do pirarucu.
Saindo do Médio Juruá e de outras regiões, o couro de pirarucu precisa viajar milhares de quilômetros de barco até Belém, onde é carregado em caminhões para outra longa jornada até a sede do Nova Kaeru, uma viagem de vários dias. De lá, segue de avião para os compradores estrangeiros.
O couro de pirarucu fez suas primeiras incursões no estado americano do Texas, onde é usado em botas de cowboy. Mas a indústria da moda está cada vez mais interessada. Na cidade de Nova York, a marca de luxo Piper & Skye usou couro de pirarucu em suas bolsas a tiracolo, pochetes e bolsas pequenas, que podem chegar a custar U$850 (R$4.400).
“Considerando que o pirarucu é uma fonte de alimento para as comunidades locais e provê sustento às pessoas nas áreas onde é pescado e em outras, não se trata apenas de um material bonito e durável. Ele promove a circularidade da espécie ao utilizar um material que, sem isso, seria desperdiçado”, disse à AP a fundadora da marca e diretora criativa, Joanna MacDonald, em uma videochamada.